domingo, 11 de março de 2012

KAOS

Primeiro livro do Millôr que li, sensacional! Senhoras e senhores, deixo com vocês abaixo, a genialidade do nosso querido Millôr Fernandes. A partir do meio do livro, reconheci um pouco de Nelson Rodrigues, mas ainda assim com muito Millôr.


Melhores partes-excelentes:

"No Início, muito antes do caos, muito antes do verbo, muito antes do Início, além do infinito, tempos em que ainda não havia o tempo, onde nem o nada ameaçava se formar, coisa absolutamente inimaginável por ainda não haver imaginação, em pleno vácuo, no seio do incogitado...
Total impalpável e intangível, vazio absoluto entre o inascido e o inascível, ponto inidentificável incomensuravelmente distante de onde as paralelas prometem encontro, onde ninguém... E nem ninguém não existia."

"Vida? O que é isso? Uma coisa terrível, da qual todo mundo morre."

"Dorme plena sob a lua cheia, descansa cheia sob a lua plena, a cidade, sob cobertores de memórias superpostas. Motoristas, banqueiros, vidraceiros, economistas, prendas-do-lar, e comediantes e açougueiros e estudantes, dormem em edifícios construídos sobre fantasmas de casas destruídas. Mortos flutuam nas estruturas, penetrando e saindo de sonhos, passeiam entre corpos e aposentos que não existem mais."

"A superpopulação ressona enquanto sopra lá fora, em golfadas sufocantes, o terral morno, criando rodamoinhos, balés de folhas girando pelas ruas em coreografias sem destino. É como uma noite antiga."

"Hai-kai

Em uma poça da rua
Um vira-lata
Lambe a lua."


"Supermercados fechados no negro graxa da noite deixam ratos passeando sob os reflexos das vitrinas de luxo, há escadas rolantes que não rolam, sonolendo degraus insones sem passos nem pés. Mas há alguém com insônia."

"Na reserva ecológica da Light a plantação de torres elétricas exibe raízes indiferentes às milhares de latas de Coca-Cola no quintal."

"Mais um dia. Ou menos um dia. Quantos tenho?"

"Mais um dia que desponta como prenúncio da escuridão definitiva?"

"E a mim, quem oferecerá o seio? E se alguém o fizer, como confiar no alimento que pode estar envenenado pela ânsia de tantos outros egos que também querem ocupar o espaço disponível nas tetas, cade vez menor? Onde e com quem aprender os passos desse balé à beira do abismo? Em que caverna habitar, quem levar para a ilha deserta, onde se vive em sonhos e devaneios? E como me administro nas horas da dúvida ou da descida ao poço da depressão? Se todos me consultam - a quem consulto?"

"Não sei se Deus morreu, como pregam os hereges, mas o amor, sim. Está morto. E não foi enterrado. Daí os urubus."

"Tudo o que faço é igual a mim."

"Mergulho no fundo do que sinto, fico fascinada e só cato bobagem. É como eu sonho. Aliás sou como todo mundo. Dentro de mim há coisas inacreditáveis que me dão uma plenitude que não existe aqui fora. E quando acordo não sobra nada. Se tento recordar, só lembro bobagem. Acho que esta percepção é minha contribuição original. Por dentro eu sou maravilhosa. O que consigo expor a mim mesma é medíocre como... como um concretismo."

"Toda noite aqui
Sol em vidas distantes
Que vejo e sigo
Na escuridão da insônia
Projeções infinitas
No avesso das pálpebras
Sem som e sem enredo
Gente silenciosa
Andando e andando
Em minha solidão
De esplendor e medo"


"Uma ou duas dezenas de intelectuais de gênio transformam esse pedaço de terra infernal, cheia de pássaros e flores insuportáveis, praias e águas perigosamente limpas, num paraíso de edifícios sem garagem, instalações artísticas de saco de lixo nas calçadas e cenas de bang bang emocionantes com roteiros de Tarantino e interpretações humilhantes para Stalone."

"Há sempre outro horizonte no horizonte. Só desaparecemos no horizonte para os que permanecem."